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Os armamentos dos Lusitanos nas campanhas de Viriato

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Os armamentos dos Lusitanos nas campanhas de Viriato Empty Os armamentos dos Lusitanos nas campanhas de Viriato

Mensagem  Arkius Sáb Abr 20, 2013 11:42 pm

O melhor e mais completo artigo, não só sobre armas, mas como táticas dos antigos Lusitanos de Viriato.

"Se estudarmos com atenção a história da Península Ibérica, mormente a do Ocidente peninsular, entre os anos 155-138 a.e.c., ou seja, durante as campanhas de Viriato, não podemos deixar de ficar atônitos como foi possível a um povo, composto por inúmeras tribos, dispersas, sem coesão, sem disciplina, sem espírito de corpo e sem treino militar de conjunto, desbaratar, reduzir a estrilhas e, o que é pior ainda, humilhar, a mais fantástica maquina de guerra de então: as famosas legiões de Roma.

Calcula-se que durante aquele período de tempo as formações lusitanas tenham morto para cima de 25.000 legionários, para além daqueles que, gravemente feridos, ficaram incapacitados de voltar às fileiras.

Para entendermos bem a dimensão do conflito e as razões do sucesso das hostes lusitanas, temos de analisar a formação sócio-tribal dos povos que habitavam o território a que os Romanos denominavam Lusitânia.

Crê-se que a Lusitânia primitiva seria essencialmente celta por causa da língua, com fundo acento nasal, embora não se possa negar também uma forte influencia ibérica que se irá refletir nas tácticas da guerra contra Roma. São, aliás, estas heranças celtas e ibéricas que irão, como veremos, ditar mais tarde o extraordinário sucesso das formações lusitanas.

As tribos que no seu conjunto formavam a Lusitânia Antiga, concentravam-se no espaço geográfico localizado entre o Douro e o Tejo. Outras tribos importantes coexistiam no Ocidente peninsular, mas não interessam de perto ao nosso estudo.

No país do Vacua (Vouga) e do Munda (Mondego), situavam-se os Turduli Veteres, mencionados mais tarde por Plínio que refere Eburobritium, Collipo, Aeminium, Conimbriga e Talabriga como algumas das mais importantes cidades deste povo. Ainda na mesma região, entre o Tejo e o Douro, Plínio menciona os Transcendanos, ou povos de Além-Côa e os Igeditanos (Egitania, hoje Idanha-a-Velha). A sul do Douro cita Plínio a tribo dos Paesuri (mais tarde denominados Paesures), dos Interumanenses, dos Talori, dos Arnui e dos Colerui.

Mesmo fora da Lusitânia propriamente dita, refere Octavio da Veiga Ferreira, mas na mesma época, estavam outros grupos tribais, alguns dos quais aliavam-se por vezes com os Lusitanos para se oporem ao invasor romano. No Cyneticum (Algarve) habitavam a tribo dos Censi ou Cempsi, que faziam parte dos Conios, Cunetes ou Cunetes e os Ileates.

Na zona compreendida entre o Tejo e o Guadiana viviam os Célticos. Mais a norte, entre o Douro e a Galiza, habitavam os Callaeci ou Calaicos. Do mesmo grupo étnico faziam parte os Celtici, povos também de origem celta, mas diferentes dos celtas de Entre-o-Tejo-e-o-Guadiana. Desses povos afamaram-se as tribos dos Grovii que se localizavam nos territórios de Entre-Douro-e-Minho, os Bracarii que viviam nas montanhas, os Leuni e os Seurbi.

Nas regiões montanhosas de Tras-os-Montes estava a tribo dos Turodi. E a norte do rio Minho, localizavam-se os Querqueri, os Limiei, os Equoesi, os Beloerni, os Tamarsi, os Neri e os Arrotrebae.

Este mosaico multifacetado das tribos da Lusitânia e territórios adjacentes, esta longe de estar completo, mas pode dar uma pálida ideia da falta de unidade social da Lusitânia.

Por essa razão, muitas vezes os povos ou as tribos eram obrigadas a aliarem-se para fazerem frente ao inimigo comum. Mas só nessas ocasiões. Em tudo o mais o regime tribal, com fortes raízes na pré-história, manteve-se fortemente arreigado nas populações ate a chegada dos Romanos.

Face a esta realidade, estamos aptos a entender a verdadeira dimensão e realidade de um conflito que opôs uma estrutura fortemente organizada, disciplinada e dotada de uma já larga e vasta experiência, a uma outra estrutura, sem disciplina, sem unidade e desprovida da pratica de atuação em conjunto, onde dominavam as tribos a que os Romanos, sarcasticamente, chamavam de "Populi".

E, no entanto, foram essas mesmas tribos que, sob a chefia de Viriato, desenvolveram durante uma década uma notável campanha com danos gravíssimos para a maquina militar de Roma.

Como foi isso possível?

Torna-se evidente que apresença de Viriato foi, nestas circunstancias, crucial. Embora a sua figura esteja ainda deficientemente estudada por falta de elementos documentais ou arqueológicos que nos permitam ajuizar com fundamento os verdadeiros contornos do cabo de guerra, desligando-o das ficções e dos mitos, o certo é que não chega para justificar a dimensão de um feito desta envergadura. Por maior que seja um chefe militar, se não tiver por detrás uma "máquina" bem equipada e convenientemente disciplinada, nada pode concretizar.

Foi esta a razão que nos levou a debruçarmo-nos sobre este problema e, durante muitos anos, a analisá-lo nas suas múltiplas vertentes, procurando quer na arqueologia, quer nos elementos documentais, provas irrefutáveis que nos permitissem com o máximo de rigor e exatidão concluir da superioridade das formações lusitanas sobre as legiões romanas.

Os resultados foram surpreendentes. A sumula que ora apresentamos, mais não é do que um resumo, ou talvez melhor, uma síntese analítica das nossas pesquisas.



A verdadeira superioridade das formações lusitanas

Uma análise atenta a problemática das guerras lusitano-romanas, no tempo de Viriato, levou-nos a concluir serem três as razoes de fundo que ditaram a superioridade das formações lusitanas:

I - muito bons cavalos e magníficos cavaleiros;

II - armamento diferente, altamente sofisticado;

III - uma nova táctica de "guerra-relâmpago".

Vamos, então, abordar cada um destes fatores comparando-os com as mesmas realidades nas legiões de Roma.

I - O cavalo

Para compreendermos devidamente a importância que o cavalo assumiu nas campanhas de Viriato, temos de recuar no tempo, quando, durante o século VI a.e.c., as tribos celtas da Europa Central começaram a emigrar para a orla do Mediterrâneo e para ocidente em direção a Península Ibérica. Essas tribos, apesar de minoritárias, eram, contudo, poderosíssimas, mercê do fato de já possuírem armas de ferro tecnicamente muito bem feitas (na altura a maioria das tribos ibéricas utilizavam ainda o bronze) mas, sobretudo, pelos seus magníficos cavalos de guerra. A superioridade no armamento e os seus instintos de combatentes experimentados aliado a táticas de combate só possíveis mercê das suas montadas treinadas para a guerra, concedeu-lhes uma superioridade tal que rapidamente subjugaram os povos por onde passavam.

Os Celtas possuíam um tipo de cavalo oriundo da Europa Central com uma envergadura acima da media dos equinos de então, muito robusto, mas de mobilidade reduzida, pelo que o seu manejo era de certo modo difícil. Isso implicava, por um lado, a existência de arreios e ferros especiais que permitissem um total controle da montada e, por outro, uma enorme destreza do cavaleiro para a dominar. Como os Celtas já conheciam e trabalhavam habilmente o ferro, facilmente souberam criar engenhos de boca e arreios adaptados às mais difíceis circunstancias. Dominavam em pleno o cavalo com freios, bridges e freios-bridges, conheciam já as ferraduras, utilizavam uma espora no calcanhar esquerdo, laboravam com grande habilidade o couro e criaram selas, algumas delas já anatômicas, que permitiam uma enorme estabilidade e equilíbrio ao cavaleiro, em uma época em que ainda não existiam estribos (que só fizeram a sua aparição no século VIII d.e.c.). Por isso, a eficácia do cavaleiro dependia da sua destreza, mas em grande parte do tipo de selas utilizadas.

Há relativamente poucos anos, tive ocasião de apreciar o monumento Júlio em S. Remígio, no Sul de França, no qual se pode ver um cavalo caído no meio de uma batalha, ostentando com nitidez a sua sela. Até então, esse cavalo devido e sua sela era tido como uma montada romana. Tive ocasião de o estudar detidamente e hoje posso afirmar, com alguma margem de segurança, que se trata de um cavalo celta com a sua sela do século I a.e.c., e cujo modelo iria servir de referencia, sensivelmente um século mais tarde, para equipar a cavalaria romana. Alias, os Romanos nunca exibiam os seus compatriotas sendo mortos nos monumentos triunfais e por isso o cavalo caído de S. Remígio nunca poderia ser romano.

Quando os celtas chegaram ao Ocidente peninsular rapidamente se aperceberam da realidade da população equina ali existente. Nos contrafortes montanhosos do Noroeste transmontano dominavam os garranos, cavalos pequenos, rústicos, de grande mobilidade, com uma incrível capacidade de sobrevivência em qualquer terreno, por mais inóspito que fosse.

Nas veigas do Mondego, Tejo e Sado dominavam os sorraias, raça maior e mais pesada que o garrano, mas também ela rustica e de grande mobilidade, gênese longínqua do atual cavalo lusitano.

Do cruzamento das montadas celtas da Europa Central com o cavalo autóctone do Ocidente peninsular iria nascer uma raça de cavalos celebrizados por Estrabão, por Plínio e por Possidônio, nascidos das "éguas fecundadas pelo vento", como relata Sílio Itálico na Púnica. Tão respeitados e estimados eram esses cavalos que muitos deles foram honrados como divindades, sendo mesmo vários santuários (como o de Mula-Murcia) erigidos em sua honra, o que bem traduz o caráter quase divino em que o cavalo era tido.

Foi esse cavalo, magnificamente adaptado e treinado para a guerra, que se constituiu como a espinha dorsal das famosas formações lusitanas.

Para entendermos devidamente o impacto que o cavalo da Lusitânia teve nas campanhas de Viriato, temos de falar também da cavalaria romana. Os Romanos eram, por natureza, maus cavaleiros. Montavam escarranchados sobre os rins dos cavalos com rédeas muito compridas o que, desde logo, lhes retirava grande mobilidade. Só quem nunca montou a cavalo é que não se apercebe do equilíbrio que é necessário para, sem estribos, montar desta forma. Por isso a equitação era restrita a aristocracia que se treinava em numerosas escolas e se passeava ou saltava no campo de Marte. Por outras palavras: o cavalo não era tido como uma arma de guerra a considerar, e por isso os Romanos, que foram os primeiros a criar coudelarias especializadas nos diferentes fins, ignoraram o cavalo de combate. Desenvolveram coudelarias de cavalos de caça (venaticus), de tiro rápido (itinerarius), de tiro lento (manus), o cavalo de passeio (gradarius ou ambulator), o cavalo para viagens longas (incitatus), os trotadores (concussator ou sucussator, ou mesmo cruciator - o que mostra bem quão incomodo era para o cavaleiro romano aguentar um trote sem sela e sem estribos), os de cortesia (cantherius) e, naturalmente, de cavalos de corridas para os hipódromos (quadrigas).

Todos estes tipos de cavalos, sobretudo os de corridas, eram cuidadosamente criados e selecionados nas melhores coudelarias de Roma. Mas o cavalo de guerra (bellator equus) era relegado para um plano secundário. Se, por um lado, não havia a tradição da guerra a cavalo, por outro, os interesses de Roma focavam-se em outros sentidos mais rentáveis que não os da guerra. Talvez por isso as legiões romanas incorporassem tão pouca cavalaria e assentassem inicialmente sobre a infantaria pesada. Por outras palavras: a cavalaria era o elo mais fraco do exercito romano. Na batalha de Pidna os Romanos tinham só seiscentos cavaleiros. Vinte e cinco anos mais tarde, os Romanos desistiram completamente da sua cavalaria, empregando em seu lugar contingentes de cavaleiros fornecidos e conduzidos por chefes locais.

Quando em 218 a.e.c, no decurso da II Guerra Punica, as legiões romanas, comandadas por Gnaeus Cornelius Scipio, pisaram solo hispânico com o objetivo de impedir o fornecimento de homens e material a Cartago, entraram em confronto aberto com as tribos locais e, a partir de 155 a.e.c., com a derrota do pretor Manlius, a Lusitânia via-se envolvida no conflito. Todos os Lusitanos da zona norte do Tejo, e também os da zona sul, aliados aos Celtas e aos Vetões, iniciam a Guerra Lusitana. O conflito começa em 151 a.e.c., apos as traições de Sulpício Galba, em que são chacinados nove mil Lusitanos e outros vinte mil vendidos como escravos. É, precisamente, depois dessa terrível hecatombe, provocada pelo pretor romano, que as forças lusitanas se unem em torno de Viriato.

Quando se da este formidável embate, as forças em presença apresentam, por um lado, as formidáveis legiões romanas, pesadamente armadas, eivadas de uma disciplina férrea, de uma eficácia comprovada em anteriores conflitos, mas completamente destituídas de mobilidade. Ali todo o poder residia na infantaria pesada. Do outro lado, dominava a cavalaria ligeira caracterizada por uma notável mobilidade, evitando o confronto direto, mas atuando ágil e brutalmente sempre que a ocasião se propiciava.

Esta foi a realidade que dominou os campos de batalha da Lusitânia e da Bética entre 155 e 138 a.e.c. A superioridade coube, naturalmente, à face mais móvel e com mais capacidade de penetração, como iremos ver Quando estudarmos as tácticas.

Alias, Roma conheceu bem o poder brutal da cavalaria ibérica durante as campanhas de Hannibal, cujo exercito incluía largos contingentes de cavaleiros peninsulares que desempenharam o seu papel de cavalaria ligeira, como também provaram ser capazes de derrotar em batalha a melhor cavalaria romana, chefiada pelos mais prestigiados cabos de guerra. Tito Lívio narra-nos, pela boca de Hannibal, quando em um dos seus empolados discursos, nos põe o general cartaginês incitando os seus homens na luta contra os romanos de Cipião:

"Por muito tempo perseguistes os rebanhos nos montes da Lusitânia e da Celtiberia, sem tirar alguma vantagem dos vossos perigos e fadigas".

Sendo a mobilidade a essência da cavalaria lusitana desenvolveu-se uma tática em que cada cavalo transportava dois homens: o cavaleiro e um auxiliar. No local da batalha o auxiliar apeava-se e combatia a pé e o cavaleiro a cavalo. Depois montavam de novo e rapidamente se afastavam do local da batalha.

Durante o século IV a.e.c. os Celtiberos deram um importante contributo na arte da guerra com a introdução da ferradura e dos cascos amovíveis de metal atados com couro. Esta invenção aumentou enormemente o potencial militar da cavalaria e influenciou a organização dos exércitos. Calcula-se que nos exércitos lusitanos a cavalaria tenha assumido 20 a 25% do total das forças, enquanto nos exércitos de Roma essa proporão era inferior a 14%.

O cavalo das tribos lusitanas era tido em grande estima e, por isso, era em circunstâncias normais, altamente decorado. Mas, em guerra, toda essa decoração lhe era retirada, ficando restrita ao essencial. Disso nos dão conta as numerosas esculturas e, sobretudo, as pinturas nos vasos de Líria, algumas das quais tive ocasião de estudar atentamente por as considerar as mais fidedignas representações do cavalo, do cavaleiro ibérico e dos seus adereços.

O treino que os Lusitanos davam aos seus cavalos e cavaleiros era intenso e cuidadoso. A montada estava treinada para se ajoelhar e aguardar em silencio até ao sinal do cavaleiro, pratica corrente na guerra de guerrilha, então em voga na Península Ibérica. Estrabão relata-nos que os cavalos neste país sido treinados a subir montanhas e a dobrar rapidamente os joelhos, dado um sinal, quando é preciso.

No combate em campo aberto, quando os cavaleiros saltavam para o chão para combater, as suas montadas esperavam-nos sem se mexerem. Cada cavalo tinha ao pescoço, fixo a cabeçada, um guizo, que permitia que no meio da confusão da batalha o cavaleiro reconhecesse o seu cavalo pelo sour do tilintar. Curiosamente esse guizo deve ter desempenhado um papel tão importante que raras são as representações em pinturas de cavaleiros ibéricos em que o guizo não tome um lugar de destaque.



II - Armas e armaduras

A proteção do corpo dos guerreiros lusitanos era objeto de um cuidado muito especial. Basicamente a armadura dos combatentes podia set feita de três maneiras:

I - de tecido, cabedal ou substancias naturais;

II - de metal;

III - mistas.

As armaduras de tecido eram normalmente feitas de linho acolchoado formando um conjunto resistente, ou de um tecido grosso embebido em vinagre e sal para o endurecer.

Nas de cabedal, que se apresentavam como corsoletes ou, de certo modo, como couraças, as partes mais expostas eram reforçadas e endurecidas com agua, apos o que eram, depois de secas, untadas com banha de porco, ou, de preferência, sebo de carneiro, para as impermeabilizar.

O esparto ou tiras de ervas secas entrançadas e enformadas eram, também, apreciadas pela sua resistência e leveza, pelo que muitos dos combatentes as preferiam para se protegerem.

Os Lusitanos herdaram dos Celtas a técnica do fabrico da malha de ferro. E de tal maneira as suas cotas se afamaram pela leveza e resistência que os Romanos rapidamente as adotaram como defesa do legionário ate ao século II d.e.c. Ao que parece, a malha de ferro estava bastante difundida entre os cavaleiros lusitanos. Embora se conheça muito poucos vestígios de malha metálica dessa época, as pinturas dos vasos de Líria são elucidativas neste particular.

Uma cota de malha demorava muito tempo a ser feita. Para além de exigir hábeis artesãos com grande pratica no manejo do ferro, a cota devia, naquela época, ser de tal forma cara que o seu acesso estava condicionado às classes mais elevadas. Uma cota de malha curta era constituída por cerca de vinte e cinco mil elos, todos laborados à mão, rebitados e temperados, e podia levar cerca de um ano a ser feita. Tao eficaz como a malha de ferro era cota de escamas, que tinha a grande vantagem de ser muito mais barata e não exigir tanta perícia no fabrico.

Geralmente as escamas eram feitas de pequeninas chapas de ferro batido com 5 cm de comprimento e 1 mm de espessura. As escamas eram geralmente sobrepostas a uma vestimenta curta feita em pele de gamo (que não encolhia com a chuva) e cozidas com tripas de gato, ou outros materiais resistentes, através de doís pequenos furos abertos no topo da escama.

A proteção das placas era constituída por pequenos quadrados (ou círculos) de ferro, ou outro metal, que atuavam como reforço nas armaduras de tecido ou de cabedal. Essas placas eram fixas ao tronco do combatente através de uma correia de cabedal que abraçava o pescoço, e outra que circundava a cintura, sendo atada a retaguarda. No Museu Arqueológico de Jaen, na Espanha, existe o resto de uma escultura em pedra de um combatente a cavalo que nos mostra bem como essas placas (na sua maioria redondas e muitas vezes altamente decoradas) estavam fixas ao combatente. Mas a mais interessante armadura de placas que tive ocasião de apreciar, encontra-se no Museu Arqueológico de la Alcudia, Elche. Trata-se de uma escultura em pedra do sec. IV ou III a.e.c., conservando ainda parte das cores originais e que retrata um combatente de alta estirpe totalmente equipado. Nela se pode apreciar a placa de armadura circular no interior da qual figura a cabeça de um lobo (símbolo da guerra) em relevo, bem como as correias em cabedal (ou ferro) trabalhado que abraçam o pescoço e a cintura.

Nas armaduras mistas o tronco estava protegido por placas de malha ou de escamas enquanto os saios eram feitas de tecido de forma a não impedir a mobilidade do cavaleiro. São estes os cavaleiros retratados nos vasos de Liria e que devem corresponder na sua maioria ao tipo comum do cavaleiro lusitano.

O elmo

A maior preocupação do combatente lusitano era a proteção da cabeça. Sabemos que essa proteção podia ser metálica, feita de cabedal ou de tendões de animais entrançados. Infelizmente não sobreviveram exemplares para além dos elmos metálicos, pelo que é sobre estes que nos vamos debruçar.

Os cascos metálicos ou capacetes utilizados na Península Ibérica entre os séculos IV a.e.c. e II d.e.c. enquadravam-se em dois tipos:

I - tipo etrusco;

II - tipo montfortino.

O tipo etrusco, assim denominado por obedecer a um formato originário da Etruria, era um casco que cobria a calota craniana e descia a retaguarda ate ao pescoço, protegendo as orelhas.

O tipo montfortino protegia somente a calota craniana, sendo as faces protegidas por duas placas anatômicas articuladas e fixas por baixo do queixo por um atilho de cabedal. Não possuía proteção na retaguarda.

Do tipo etrusco não se conhece nenhum exemplar, restando-nos a sua representação em esculturas e pinturas. Aliás, o seu uso disseminou-se basicamente na orla mediterrânica. No Ocidente peninsular prevaleceu o tipo montfortino.

Originário da área céltica da Itália o capacete montfortino tornara-se muito comum em todo o Mediterrâneo Ocidental e produzidos maciçamente chegaram incluso a ser usados pelos Cartagineses. Quando apareceram em território ibérico não devem considerar-se somente de influencia celta, mas, sobretudo, mediterrânica. Curiosamente os Iberos tiravam as guarda-faces (metálicas ou de couro) porque os incomodava em combate. Todos os elmos desse período encontrados na Península Ibérica são do tipo montfortino, o que não é de admirar pois foram estes os capacetes utilizados durante as guerras púnicas e nas lutas entre Cesar e Pompeu sendo a sua produção na ordem dos milhares de exemplares. Dos elmos recuperados em território peninsular oito foram descobertos em Portugal.

Tive ocasião de poder estudar alguns desses exemplares oriundos do território português. A observação atenta e um estudo aprofundado conduziram a conclusões surpreendentes. Toda a sua concepção, quer sob o ponto de vista anatômico, quer no que concerne a proteção, é perfeita. Batido a frio em três chapas de bronze sobrepostas, aquecidas e retemperadas por um processo a que os Romanos deram o nome de opus mallei, o elmo apresenta 2 mm de espessura lateral (em termos médios) e 3 mm no topo, a área mais sensível às pancadas, o que prova bem a técnica e o cuidado posto na sua manufatura. No cimo do elmo assenta um botão de altura variável furado a meio, no qual era colocado um punhado de crinas de cavalo de cores variadas, conforme a tribo ou a unidade militar a que pertenciam. Nos lados, dois guarda-faces articulavam-se com a calota protegendo totalmente a cara. Debaixo do suporte da retaguarda havia um anel duplo pelo qual passavam as correias de cabedal que se atavam sob o queixo e fixavam nos ganchos das peças laterais do rosto.

A sua concepção era, na altura, de tal forma avançada que os Romanos rapidamente o adotaram e mantiveram em uso ate pouco depois da conquista da Gália, altura em que as legiões do Norte os abandonaram definitivamente. No entanto, na Itália, o tipo montfortino continuou em uso durante muito tempo protegendo as cabeças dos soldados da guarda imperial.

O escudo

Os Lusitanos utilizavam dois tipos de escudo: a caetra, pequeno escudo circular utilizado pelos caetrati ou infantaria ligeira, e o scutum, modelo longo de origem celta utilizado pelos scutati ou infantaria pesada. O scutum apesar de popular no Sul e Centro da Ibéria por influencia celta, nunca foi muito apreciado entre os Lusitanos, porque lhes tolhia os movimentos e cerceava a mobilidade.

O escudo preferido foi sempre a caetra. Feito em tiras de madeira unidas com peças de ferro, este escudo tinha cerca de 30 a 60 cm de diâmetro, e na face exterior era muitas vezes ornamentado com uma bossa metálica ao centro, que também servia para cobrir a empunhadura e proteger a mão do combatente. Uma correia de cabedal fixa ao interior servia para suspender a caetra ao pescoço quando o guerreiro não se encontrava a lutar. Durante o combate a correia era enrolada com força no antebraço ajudando a fixar o escudo e permitindo que este fosse também utilizado como arma de ataque.

A lança

Os Lusitanos, tal como a maioria dos povos ibéricos, tinham uma enorme variedade de lanças. Tive ocasião de estudar alguns dos mais significativos exemplares encontrados em Portugal e permito-me, com alguma margem de segurança, classifica-las em dois grupos:

I - a lança tradicional com lamina e conto de ferro e haste de madeira;

II - a lança toda feita de ferro a qual os Romanos davam o nome de soliferrum.

No que respeita a lança tradicional, é possível considerar ainda três subgrupos de acordo com o comprimento da lamina:

a) Laminas com mais de 60 cm. O numero de exemplares existentes permitem-nos considerá-las como um subgrupo distinto, possivelmente utilizadas pela infantaria pesada, os scutati;

b) Laminas com cerca de 20 a 30 cm. Situam-se aqui a maioria dos exemplares encontrados em Portugal, e devem ter sido bastante usadas pela infantaria ligeira, os caetracti, sob a forma de dardos, como arma de arremesso. Este tipo de dardo, que parece ter uma precedência celta, foi muito utilizado quando do cerco de Sagunto, e Tito Lívio chama a esta arma ibérica phalarica;

c) Laminas com comprimento inferior a 20 cm. Este tipo de laminas era utilizado pela cavalaria ligeira que as colocava num conjunto que compunha a bainha da espada. O cavaleiro fazia a viagem toda com a lamina à cintura sem que esta lhe tolhesse os movimentos. Chegado ao local de batalha cortava uma haste de madeira e colocava-lhe a lamina, combatendo assim com ela. No final atirava a madeira fora, voltava a pôr a lamina na bainha e regressava ao, local de origem. No caso da lança ser utilizada como dardo a lamina perdia-se naturalmente.

Muitas vezes estas pontas apresentavam-se sob a forma de uma lamina relativamente curta, mas com um pé muito comprido onde encaixava a haste. Tratava-se de exemplares aos quais os Lusitanos amarravam molhos de ervas secas a arder destinados a quebrar as formações inimigas.

Quanto ao soliferrum havia-os de diversos comprimentos, sendo que raramente ultrapassavam os dois metros. Toda a lança era feita de ferro, terminando com uma ponta em forma de lamina barbeada. O fato de ser feita de ferro e por isso mais pesada do que as lanças tradicionais, concedia-lhe, a curta distância, um enorme poder de penetração. Um soliferrum bem lançado podia facilmente atravessar o escudo, a couraça e ferir mortalmente o oponente. Por isso os Romanos a consideravam uma arma temível e evitavam-na sempre que possível, já que o escudo do legionário era feito com estreitas ripas de madeira e, por isso, impotente para parar tão poderosa arma.

Existem bastantes exemplares deste tipo de lança encontrados em escavações, mas, a exceção de uma escassa minoria, todos os outros se encontram dobrados e enrolados. Tive ocasião de estudar uns quantos exemplares do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, e do Museu de Alcácer do Sal. Todos eles apresentam sinais de terem sido dobrados a quente com o fim de os inutilizar, para evitar o saque dos túmulos e a sua posterior reutilização.

A espada lusitana

Foi talvez a mais famosa e emblemática arma das hostes de Viriato. Tão famosa que os Romanos, reconhecendo a sua superioridade, as adoptaram com o nome de gladius hispaniensis.

Observei inúmeras destas espadas oriundas de Alcácer do Sal, de Elvas e do Museu Nacional de Arqueologia. Estudei atentamente as analises espectrográficas e metalográficas levadas a cabo pelo Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial (LNETI) e analisei profundamente a sua manufaturação, refleti sobre as suas formas e extraí resultados profundamente surpreendentes.

De uma forma geral, podemos classificar a espada ibérica (e não só a lusitana) em dois grupos distintos:

I - de lamina direita;

II - de lamina curva (sabre) vulgarmente conhecida por falcata. Estabeleceu-se erradamente, a meu ver, a ideia de que a espada andava associada aos Celtiberos e a falcata aos Iberos. Creio ser pura ficção, desmistificada já pelos dados da arqueologia, mas sobretudo pela pintura. Tendo visto e analisado falcatas em zonas culturais celtiberas e espadas em zonas ocupadas pelos Iberos, o que prova que ambas as armas foram utilizadas pelas duas culturas.

O gladius hispaniensis

Os Romanos eram um povo muito pragmático que não hesitava em adotar o equipamento e as práticas dos povos subjugados. Durante as Guerras Púnicas, as legiões de Roma entraram em contato com os mercenários ibéricos e ficaram tão impressionadas com o nível técnico e operacional das suas espadas que rapidamente as adotaram com o nome de gladius hispaniensis.

Ate 225 a.e.c. o legionário romano estava equipado com uma espada curta idêntica a utilizada pela infantaria grega, a que estes davam o nome de phdsaana ou xiphus. As espadas gregas dessa época, principalmente as utilizadas pela cavalaria, mais compridas e pesadas, mantinham um desenho que já vinha desde séculos atrás, mais exatamente desde a Idade do Bronze. O seu desenho, mas sobretudo o seu ponto de equilíbrio, era, nessa época, considerado o ideal em relação aos povos de então, mas completamente desfasado face às novas táticas, sobretudo em relação as espadas lusitanas, muito mais bem construídas tenicamente, muito mais equilibradas e, por isso mais eficazes.

Tive ocasião de me debruçar sobre este particular. Não será nada fácil exprimir a dimensão do estudo efetuado, já lá vai um bom par de anos, por isso limito-me a reproduzir uma síntese das conclusões a que cheguei, as quais se me afiguram da maior importância para entendermos as razoes que levaram as legiões de Roma a considerarem o gladius hispaniensis como uma arma superior para a sua época.

O desenho das espadas gregas manteve-se inalterável, desde a Idade do Bronze. Nessa época a espada era feita para espetar e, face a docilidade do metal - mesmo temperado -, acabavam por ter uma lamina relativamente grossa e pesada, uma empunhadura cheia, espalmada entre duas bolachas de madeira ou osso e praticamente desprovidas de pomo que lhes garantisse o balanço. Sendo uma arma destinada mais a espetar do que a cortar e face as condicionantes do material, o ponto de equilíbrio não era importante, pelo que a espada grega era por natureza uma arma desequilibrada. Sendo uma arma desequilibrada, o esforço exigido para o seu manuseamento era maior, pelo que a eficácia em combate era naturalmente menor.

Convém agora abordar alguns aspectos de ordem técnica para melhor compreendermos a superioridade das espadas ibéricas.

As espadas daquela época possuíam dois pontos nevrálgicos: o ponto de balanço, a que os ingleses chamam "point of ballance" (POB), "center of ballance" (COB) ou "center of gravity" (COG) e o centro de percussão "center of percussion".

O ponto de balanço (POB) é uma zona calculada na lamina a partir da qual se desenvolve igual massa para cada um dos lados. Para se testar a localização desse ponto basta deitar a lamina sobre um dedo e movimentar a espada até esta ficar em total equilíbrio. Aí se situa o ponto de balanço.

Não menos importante que o ponto de balanço e o centro de percussão (COP). Este é o ponto localizado na lamina onde deixa de haver vibrações quando a lamina embate em um objeto. Quando esta seção da lamina é usada para golpear transmite o mínimo de choque e de vibrações à mão do seu possuidor e por isso garante uma maior penetração no alvo. Quanto mais recuado ou maior for a zona do COP, tanto melhor é a qualidade da lamina. Há um teste muito simples para se determinar o COP. Agarra-se verticalmente com a ponta para cima e dá-se uma pancada suave e seca no pomo. O ponto na lamina onde deixar de vibrar e o COP.

Estas breves explicações são necessárias para se perceber a razão por que os Romanos largaram as suas antigas espadas gregas e adotaram o gladius hispamensis.

Nas espadas gregas o POB localizava-se a 1/3 da lamina abaixo do punho, o que em termos reais era um anacronismo e tornava a espada desequilibradíssima.

A espada ibérica ultrapassou todas estas condicionantes e, naturalmente, foi eliminando estes inconvenientes. Sendo uma arma destinada ao combate à curta distancia no meio de uma confusão de combatentes, tinha de ser altamente eficaz. Por isso foi idealizada para cortar e espetar. Também por isso o seu equilíbrio tinha de ser perfeito para garantir uma total eficácia.

Da analise que efetuei a duas espadas do Museu Municipal de Alcacer do Sal e outras duas do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, verifiquei que o POB coincidia exatamente com a união da lamina com a empunhadura e sensivelmente com o COP Não se podia exigir nem mais, nem melhor. Dotada de uma extraordinária maleabilidade, garantia um muito maior equilíbrio e por isso mais eficácia.

O gládio hispanico derivou assim das espadas ibéricas comumente conhecidas por espadas de antenas. Se observarmos atentamente essas armas, rapidamente nos apercebemos que existem dois tipos distintos:

I - espadas de antenas propriamente ditas derivadas dos modelos típicos da Europa Central durante o período de La Tene I e II;

II - espadas de antenas atrofiadas.

O primeiro modelo, de antenas longas, lamina reta e comprida, chegou a Península Ibérica ainda na sua forma primitiva, durante as invasões celtas no século VI a.e.c. e foi mais tarde adatada localmente, dando origem às espadas de antenas atrofiadas. Estas espadas tinham uma lamina chata e curta com. dois gumes, geralmente paralelos, terminando em ponta e com um punho todo em ferro, encimado por duas pequenas bolas ou discos horizontais. Todas estas transformações foram feitas no sentido de as tornar muito mais eficazes e, por isso, mortais.

Os ferreiros da Lusitânia eram extremamente hábeis e guardavam zelosamente as suas técnicas que eram transmitidas em grande segredo de pais para filhos. Por isso o grau de perfeição da manufatura das armas, não só na Lusitânia, mas em toda a Península, era enorme. E disso nos dão conta os textos de autores contemporâneos.

Na preparação do aço para o fabrico das espadas, Diodoro relata-nos que os bons fabricantes enterravam tiras de metal deixando que a ferrugem destruísse a parte mais fraca. Limpavam, voltavam a enterrar e repetiam três vezes o processo. No fim o aço estava preparado para produzir espadas magníficas.

A espada em si era fabricada segundo um processo a que os ingleses deram o nome de "welding-pattern" (denominação atual), processo tão perfeito que perdurou até ao século VIII d.e.c. A lamina era composta por três partes: duas tiras laterais - que irão dar origem aos gumes - e um núcleo central feito por um processo muito complicado composto por várias tiras muito fininhas de aço menos temperado e que garantia uma grande flexibilidade à lamina.

Fílon relata-nos como essas espadas eram feitas, salientando a extraordinária pureza do aço e o magnifico trabalho de forja que era necessário para que o aço não ficasse nem demasiado mole nem demasiado rijo e, por causa disso, quebradiço. Salientando o trabalho da forja, Fílon acrescenta que não eram usados grandes martelos, pois não deviam ser dadas violentas marteladas. O martelo devia trabalhar suavemente e as marteladas dadas sempre na vertical, garantindo uma elevada tempera só nas tiras laterais, a fim de que não atingisse e compactasse o núcleo central tornando a lamina rija e quebradiça.

Quando o conjunto saía da forja era arrefecido e novamente batido a frio nas tiras laterais, numa face e noutra, obtendo desta forma uma ainda maior tempera em ambos os lados, enquanto o núcleo central - que não tinha sido temperado pelas pancadas - permanecia "mole". Assim as espadas lusitanas possuíam uma enorme flexibilidade devido ao fato das suas laminas serem compostas por três núcleos, dois altamente temperados e um, no meio, mais "mole".

Depois a arma era polida com uma roda de madeira com gordura de porco e areia fina e, logo a seguir, com pó de talco, ficando brilhante como um espelho. No final, relata-nos Fílon, para demonstrar a qualidade do seu produto e a pureza do seu ado, o "espadeiro" agarrava a espada horizontalmente sobre as palmas das mãos, uma colocada no punho e a outra na ponta da lamina. Depois dobrava a arma tocando com a ponta num ombro e com o punho no outro.

Seguidamente largava a lamina e esta tinha de voltar a posição inicial sem qualquer distorção.

Foi a grande superioridade técnica desta arma que levou a que os Romanos, apos as guerras com Hannibal, abandonassem as suas velhas espadas de modelo grego e adotassem o gladius hispaniensis.

Mas o que realmente aconteceu é que eles copiaram a forma mas nunca conseguiram alcançar a qualidade do seu aço nem o seu nível técnico. No fundo, acabaram só por reproduzir o desenho da espada lusitana.

Há um bom par de anos pedi autorização ao Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, para analisar detidamente uma espada com o fim de a reproduzir fielmente. Consegui faze-lo, utilizando uma forja da minha quinta na Golegã e obtive uma arma com exatamente as mesmas dimensões e o mesmo peso que a original. Quando ao testar a sua flexibilidade tentei dobrá-la esta partiu-se como um vidro. Tinha sido demasiadamente temperada. Tentei corrigir o defeito e voltei a manufaturar novo exemplar. Aí a lamina dobrou mas não voltou de novo ao lugar. Confesso que fiquei atônito. Tinha respeitado todas as fases do antigo fabrico, mas em nenhuma a "arqueologia experimental" funcionou. A solução era confirmar cientificamente o relato dos autores clássicos.

Para tal pedi a colaboração do LNETI, que se prontificou a efetuar uma análise espectrográfica a uma espada encontrada em Alcácer do Sal. Os resultados foram surpreendentes e confirmaram o elevado nível da tempera e cementação dos artífices lusitanos.

A superfície continha carbono até a profundidade de 0,31 mm. Essa quantidade ia decrescendo progressivamente até que no centro da lamina a quantidade de carbono era nula. O processo de endurecimento transformara a martensite em fealite, confirmando o primitivo método de cementação seguido da refrigeração do aço e da tempera a frio.

Mas as surpresas não se ficaram por aqui. As proporções do carbono apresentavam uma variação progressiva do gume ao centro da lamina de uma forma tão perfeita que hoje se torna praticamente impossível obter os mesmos resultados no fabrico de uma lamina. Junto dos gumes a proporção de carbono era de 0,4%, decrescendo em direção ao centro para 0,33% 0,22%, 0,09%, 0,02% e 0. Como se torna possível tal primor técnico? Para mim continua a ser um mistério.

Um aspecto bastante curioso e revelador do formato da espada e do tipo de guerra "relâmpago" travado pelos Lusitanos (e de um modo geral pelos povos peninsulares), prende-se com a forma como os gládios eram transportados.

O gladio era colocado dentro de uma bainha de cabedal reforçada com duas cantoneiras metálicas de cada um dos lados, as quais eram caldeadas três a quarto argolas de suspensão. Unindo as cantoneiras sobre o cabedal eram colocadas duas tiras metálicas de reforço com uma protuberância ao centro destinada a receber uma pequena navalha, em forma de falcata, com não mais de 10 a 15 cm de comprimento, e a ponta de uma ou duas lanças.

O cavaleiro viajava com este conjunto suspenso por uma correia de cabedal do ombro direito a cintura esquerda, ou vice-versa, conforme destro ou canhoto. No local do combate apeava-se, cortava uma haste de madeira, com a navalha curva aparava os galhos e aplicava-a a lança. Combatia com ela e no fim deitava a haste fora, voltava a colocar a ponta da lança na bainha e retirava-se sem que a lança o estorvasse e limitasse a velocidade de deslocação da sua montada.

Um outro particular prende-se com o tamanho do gladio. Porque e que era tão curto? O cinema e a televisão divulgaram a ideia completamente falsa de combatentes esgrimindo as suas espadas, aço contra aço, até que um deles, mais hábil, matava o adversário comum golpe fatal. Tudo isto é pura ficção, e nunca se passou na realidade, até porque o tamanho reduzido das espadas lusitanas impedia qualquer tipo de esgrima. O combatente aparava, geralmente, o golpe do adversário com a caectra e contra-atacava com o gladius. Podia haver no meio algumas nuances, mas basicamente era assim que tudo se passava. Por isso não necessitavam de gladios de lamina comprida, que só os podiam estorvar no meio da confusão da batalha.

A falcata

Foi, talvez, a mais emblemática e eficaz arma dos Lusitanos e aquela que mais "dotes de cabeça" causou as hostes romanas.

Não se sabe a origem da falcata na Ibéria. Há duas teorias, ambas possíveis: segundo uns a falcata não foi mais do que uma adaptação local de uma faca de lamina curta do período Halstatt, proveniente da Europa Central e que se disseminou pela Grécia, Itália e Península Ibérica. Esta teoria é refutada pela maioria, que considera a falcata uma copia exata da machaera ou kopis grego, levado para a Ibéria por mercadores gregos ou por mercenários recrutados pelos gregos, por volta do século VI a.e.c. Muitos ainda defendem a ideia de que a falcata é uma criação local (ibérica). Embora tal não seja completamente absurdo, a influência da cultura grega ao longo de todo o Mediterrâneo foi de tal ordem que a maioria dos historiadores considera pouco credível a ideia da invenção local daquela arma.

Enquanto os legionários romanos utilizavam o gladio quase sempre de ponta, a falcata nunca era usada para espetar, mas para atuar de gume. O desenho tão característico desta arma colocava o POB junto da ponta da lamina, o que a tornava uma arma basicamente desequilibrada e, por isso mortal, já que aumentava enormemente o seu efeito cinético.

De uma maneira geral o gume da falcata localizava-se (ao contrario dos sabres) no interior da curva. Daí a sua espetacular eficácia. Mas, muitos fabricantes tentavam aumentar ainda mais a sua eficácia afiando também o lado contrario ao gume. Assim, a falcata ficava a possuir dois gumes e podia ser utilizada em direções contrárias.

Diodoro relata que as falcatas possuíam uma tal qualidade que nenhum elmo, escudo ou ossos podiam resistir aos seus golpes. Seneca conta um episódio que bem demonstra o terror que os legionários romanos sentiam pela falcata. Um veterano encontra Cesar a quem pergunta se se lembrava de um jovem legionário que lhe levou agua no elmo quando ele (Cesar) descansava sob uma arvore:

"Então imperador, reconhecerias esse homem ou esse elmo? Cesar respondeu que não podia reconhecer o elmo, mas o legionário reconhece-lo-ia certamente. E acrescentou. Mas tu não es de certeza esse legionário. Não me surpreende - disse o homem - que não me reconheças, Cesar, porque quando isso aconteceu eu estava inteiro. Depois, em Munda, arrancaram-me um olho e a minha cabeça foi esmagada. Jamais poderia conhecer esse elmo se o visse: ficou dividido ao meio por uma machaera hispana".

Esta impressionante narrativa dâ-nos a conhecer, para além da ideia da brutalidade desta arma, o nome porque era conhecida naquela época, entre os Romanos. Falcata é uma denominação recente, data do século XIX. Ficamos a saber que os Romanos a conheciam por machaera hispana, mas nada sabemos sobre essa denominação dada pelos Lusitanos. Tenho tentado por todos os meios descobrir, mas até agora os meus esforços foram infrutíferos.

As muitas falcatas descobertas em território português e espanhol que tive ocasão de estudar permitiram-me classifica-las em três grupos, segundo o tipo de empunhaduras:

I - falcatas com a empunhadura terminando em cabeça de pássaro;

II - falcatas com a empunhadura terminando em cabeça de cavalo;

III - falcatas com a empunhadura terminando em cabeça de lobo.

Podemos, ainda, considerá-las de acordo com o comprimento das laminas:

A - falcatas de lamina longa;

B - falcatas de lamina curta.

Os exemplares mais antigos foram encontrados em Villaricos, junto de vasos gregos importados e datam dos século V e IV a.e.c., provavelmente cópia dos modelos gregos, e em todos eles a empunhadura assume a forma de uma cabeça de pássaro ou bico de mocho. É uma utilização que faz todo o sentido já que aquela ave fazia parte integrante da simbologia grega.

A medida que as falcatas se foram vulgarizando em território ibérico, o punho foi assumindo a forma de pescoço de cavalo, provavelmente pela muita estima e veneração que os povos da Ibéria tinham por aquele animal. Só bastante mais tarde alguns raros exemplares passaram a ostentar a cabeça de lobo, símbolo da guerra.

De uma maneira geral, podemos considerar esta tipologia extensível ao território português, onde vamos encontrar todos estes tipos de falcata. O que não há dúvida alguma é que durante as campanhas de Viriato a falcata estava já bastante difundida por todo o território da Lusitania.

Quando o pretor P. Carisius ordenou a cunhagem de dentários em Emerita Augusta, para celebrar a sua vitória sobre os Cantabri, em 22 a.e.c., mandou gravar na face da moeda uma falcata e uma caetra - as armas dos vencidos.

O comprimento usual das falcatas da orla mediterrânica e do interior da Península Iberica andava a volta dos 60/70 cm. Mas o comprimento das falcatas lusitanas era muito menor. Raramente excediam os 38 cm de lamina. A lamina apresentava 5 cm na sua parte mais larga e a sua espessura era de 5 mm.

Os Lusitanos combatiam em grandes aglomerados de homens, muito concentrados, e onde a confusão devia ser imensa. Por isso, uma arma curta trazia sempre enormes vantagens em maleabilidade e em eficácia.

Embora não tenha provas cabais, tudo me leva a crer que a cavalaria lusitana teria usado falcatas mais longas, reservando para a infantaria as espadas mais curas.

A falcata era transportada numa bainha geralmente de couro (embora pudesse também ser feita de outros materiais) reforçada por tiras metálicas moldadas ao longo dos gumes da bainha, onde eram caldeadas três ou quatro argolas destinadas a suspender a arma do ombro a anca (direita ou esquerda) do combatente, ficando esta numa posição horizontal, com o gume cortante voltado Para baixo.

Fundas e fundibulários

Os fundibulários eram, ao tempo, considerados como uma tropa "especial", famosa pela perícia dos seus homens no manejo da funda, uma arma simples mas terrível, capaz de grande precisão e dotada de uma potencia tal que podia, com alguma facilidade, esmagar elmos e couraças.

Quando os Romanos entraram na Ibéria já conheciam a fama dos fundibulários peninsulares, por terem lutado contra eles, em especial nas campanhas contra os gregos na Sicília nos século V e VI a.e.c., e contra as forças de Hannibal, nos inícios do século III a.e.c.

O manejo de uma funda não era nada fácil. Exigia uma enorme destreza e, sobretudo, um treino intenso e constante. O treino começava na infância, sendo ministrado pelos pais e parentes próximos. Quando a criança já se encontrava familiarizada com a funda os pais deixavam de lhes dar alimento e punham um pão sobre uma estaca. Só quando, a vinte metros, a criança fosse capaz de atirar com o pequeno projétil o pão ao chão é que era autorizado a comê-lo. Assim, quando chegavam à idade adulta, eram já exímios atiradores, dotados de uma enorme perícia.

Os Lusitanos fabricavam as suas próprias fundas, de acordo com a sua estatura e comprimento do braço. As melhores fundas eram geralmente feitas com junco negro, muito batido, até se tornar numa espécie de ráfia, que depois era entrançado, ou colocado lado a lado, com tendões de pescoço de cavalo, ou de boi, ou com cerdas retiradas das caudas dos cavalos.

Cada fundibulario transportava três fundas, de acordo com a distancia que pretendia atingir e com a envergadura do projétil. A mais curta era enrolada a volta da testa, segurando os cabelos. As outras duas eram transportadas em redor da cintura.

Os projéteis de pequena ou media envergadura eram feitos de chumbo ou barro endurecido. Para os projéteis pesados qualquer pedra escolhida no local podia servir.

Os projéteis de chumbo tinham uma forma elíptica - semelhante a uma bola de raguebi - com cerca de 5 cm de comprimento e muitos ostentavam dizeres, letras ou desenhos. Essas glandes de chumbo eram fundidas em grupos de seis ou oito sobre moldes de pedra-sabão. Aparecem em grande quantidade nos locais de batalha ou em zonas de cercos, o que prova o seu intenso use pelos povos da Ibéria.

Pelo que toca à força e alcance destas armas, bastara referir que em 123 a.e.c. Quinto Cecílio Metelo tentou desembarcar nas Ilhas Baleares, onde foi recebido com uma saraivada tal de projéteis de funda vindos de terra, que foi forçado a estender couros de boi crus nos lados dos navios para proteger a tripulação.



III - Tática em batalha

Para entendermos verdadeiramente o comportamento dos Lusitanos nos campos de batalha, temos de assumir os contornos do homem-combatente. Diodoro relata-nos que havia um costume característico dos Ibéricos, mais particularmente dos Lusitanos, segundo o qual, quando um rapaz atingia a idade adulta, a fim de mostrar a sua coragem e capacidades adquiridas, equipava-se com as suas armas e embrenhava-se nas montanhas. Para estes homens habituados desde cedo a um meio hostil, a aspereza das montanhas, os perigos e a vida dura faziam parte integrante do seu dia-a-dia. A montanha era a sua própria casa e as guerras contra outros bandos ou tribos uma forma de sobrevivência.

Todo este treino constante acabava por moldar um formidável combatente capaz de enfrentar e contornar todas as situações, por mais difíceis que elas se apresentassem. E, para os Romanos, habituados aos métodos hoplitas, característicos do modelo republicano, as tácticas diferentes usadas pelas tribos ibéricas constituíram uma enorme surpresa.

A tática lusitana assentava numa grande mobilidade, onde o uso do cavalo se destacava como elemento determinante. Cada cavalo transportava dois cavaleiros totalmente equipados. No campo de batalha um combatia a cavalo e o outro a pé. Na retirada o cavaleiro apanhava o seu par e sumia-se rapidamente. Em deslocações que exigissem mais rapidez que o normal o combatente apeado passava o braço direito sob o pescoço da montada agarrando a borda da sela, enquanto a outra mão segurava com força as crinas do animal. Por este processo o combatente apeado podia deslocar-se à mesma velocidade de um cavalo a galope.

No campo de batalha as formações lusitanas causavam uma enorme impressão às bem disciplinadas legiões romanas. Os Lusitanos pintavam, à maneira dos povos bárbaros da Europa Central e Atlântica, a cara com uma tinta azul feita a partir de uma substancia chamada "pastel de tintureiros". Antes de iniciar o combate os guerreiros da Lusitânia emitiam um tremendo, prolongado e execrando grito de guerra que os Romanos denominavam barritos que começava em uma nota aguda e acabava com uma grave, colocando o escudo a frente e a palma da mão contraria em funil, por forma a ampliar o som. Emitido por milhares de combatentes o tremendo grito de guerra fazia gelar o sangue ao mais destemido legionário.

Depois, ao som de umas trompas de barro, dava-se o ataque, brutal, mas em aparente desordem. A um sinal combinado, os guerreiros simulavam uma retirada, dando a entender que estavam derrotados. Este processo era repetido sistematicamente durante vários dias obrigando as legiões a um enorme esforço na perseguição e na manutenção da disciplina, já que a atração de perseguir estas hordas era muita.

Apos repetidos ataques, os Romanos começavam a perder a disciplina, os nervos "perdiam-se" e a bem ordenada formação romana desfazia-se iniciando a perseguição ao inimigo.

Era nessa altura que os guerreiros lusitanos, a um sinal pre-combinado, se reagrupavam e contra-atacavam, dizimando a legião dispersa, lenta e pesadamente equipada e, por isso, destituída da agilidade necessária para combater este ataque fulminante e surpreendente.

Torna-se evidente que este modelo de combate não era desenvolvido ao acaso. Tinha de obedecer a uma tática muito bem concebida e magistralmente executada. Só assim podia surtir o efeito desejado contra uma máquina de guerra superiormente organizada, experimentada e disciplinada. A confirmá-lo, estão as inúmeras trompas de guerra feitas em material cerâmico, descobertas em escavações em muitos dos lugares onde ocorreram confrontos. Só em Numancia foram exumadas cerca de cinquenta dessas trompas. Espalhadas pelo campo de batalha, devem ter servido para emitir os sinais que coordenavam o movimento das tropas da Lusitânia.

Cada guerreiro dos Lusitânia transportava consigo um pequeno frasco, geralmente feito em cabedal, contendo um poderoso veneno de ação rápida, extraído do bolbo de uma planta denominada Ranunculus Sardonia. Em caso de derrota e para evitar ser capturado vivo e submetido a torturas o combatente tomava de um trago o veneno, que atuava rapidamente, provocando a morte quase imediata. Este veneno estimulava a contração dos músculos da cara dando ao morto a aparência de um sorriso sinistro, sardônico. Para o legionário romano isso provocava um medo terrível, pois pensava que os homens mortos desta maneira estavam fazendo troça dele, na outra vida.



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Miguel Sanches Baêma - ex diplomata e especialista em História Militar.
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Os armamentos dos Lusitanos nas campanhas de Viriato Empty Re: Os armamentos dos Lusitanos nas campanhas de Viriato

Mensagem  M· Diniz Nemetios Qua maio 01, 2013 10:10 am

Um ótimo texto, Breno, sem dúvida! Muita coisa interessante que merece ponderação e mais pesquisa.

Muito obrigado por postar cá - por favor, fica a vontade para postar mais material deste tipo, a parte relacionada a guerra do fórum está bem defasada, na verdade, pelas correrias todas terminou que eu mesmo estou um tanto quanto ausente deste espaço, mas espero voltar em breve e cheio de boas notícias Wink
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